- Oi.- Oi. – respondi.
“Que foi? Vai me convidar para o casamento?”, eu pensei.
- Tudo bem?
- Tudo.- Sabe, Christian... nunca mais nos falamos depois daquele dia. Pensei sobre as coisas que me falou e...
- E...?- Eu estive pensando em você, apenas isso.- Pensando...?- Nada. Apenas pensamentos. Nem bons nem maus. Pensamentos que gosto de ter.
- Que bom! Fico feliz. Mas agora eu preciso ir, estou atrasado para a aula.
- Você me liga quando voltar?- Volto tarde.
- Eu te ligo então... não aceito não como resposta.- Está bem.
Desliguei o MSN e fui para a aula. Quando voltei, ainda não conseguia tirar isso da minha cabeça.
Como prometido, ele me ligou. Ouvi seu “alô, Christian?” tímido do outro lado e senti meu estômago gelar novamente. Conversamos durante horas sobre os mais variados assuntos e quando desliguei, arrisquei dizer:
- Tenho que ir dormir, mas adorei conversar com você. A gente se fala amanhã?
- Com certeza!
Com uma voz de bobo apaixonado eu perguntei:
- Promete?
E com uma voz sussurrante ele respondeu:
- Prometo! Beijos, beijos, beijos.
- Muitos beijos, gatinho.
Desliguei e fui dormir pensando nele.
Foi maravilhoso alimentar aquela esperança, justo naquele momento quando eu achava que jamais a alimentaria de novo. Durante dias, semanas, ele me ligava. Terminávamos falando coisas do tipo e ele prometia marcar um novo encontro, mas nunca marcava. Durante um bom tempo ele me enrolava. Eu perguntava ao telefone quando nos veríamos, e o quanto ele gostava de mim. Ele nunca dizia. Ou sussurrava, em tom de mistério: “você vai ter que descobrir”.
Quando nos encontrávamos (o que raramente acontecia) ele me tratava como amigo e eu nunca sabia se era o momento de “investir” ou não. Conversávamos, ríamos, assistíamos a filmes, e um dia vimos um filme gls romântico juntos. Na cena final, ele disse: “oooh” e acariciou meu rosto e meu cabelo. Pensei em tentar beijá-lo, mas fiquei com receio de perdê-lo.
Ainda lembro bem de um dia daqueles, quando entrei no MSN e ele estava lá.
- Christian. – ele disse.- Daniel!
- Sabe, Christian... hoje um garoto muito lindo veio pedir para ficar comigo.
- E...?
- E eu disse não. Afinal, já estou ficando com alguém?
- O que quer dizer? - Você não percebeu? Eu gosto de você.
Senti uma grande felicidade, mas ao mesmo tempo um pressentimento estranho me impedia de ficar totalmente feliz. Mesmo assim, poderia pular de alegria.
- Quando nos veremos então?- Em breve. De noite eu te ligo.Nossos telefonemas eram estranhos. Às vezes brigávamos por poucas coisas. Às vezes, parecíamos bem, e de repente, ele fazia comentários estranhos, repentinos. Mas a pior briga foi quando, em algum momento, de alguma forma tocamos no assunto “racismo”, e eu disse que ele era mulato/pardo. Sua voz se alterou:
- Eu??? Pardo? Você está louco? Eu não sou isso!
- Mas... Daniel... qual o problema em ser mulato?
- Eu não sou!
- Mas... então estou cego.
- Eu tenho o cabelo liso! (Ele não tinha o cabelo realmente LISO, ele fazia mil tratamentos para deixá-lo o mais liso possível, e eu já havia percebido, pois já tinha tocado seus cabelos). Você é um racista, Christian! Um hipócrita e um racista!
- Racista? Você está equivocado, Daniel. Se existe uma coisa da qual tenho pavor é preconceito de qualquer tipo. Mas não consigo entender como posso ser considerado racista apenas porque constatei um fato. Se eu disser a uma pessoa de olhos azuis que ela tem os olhos azuis, sou preconceituoso contra pessoas de olhos azuis?
- É diferente. De negro não se pode falar.
- Isso é que eu acho racismo. Para mim, todo mundo é igual.
- Só quero que você me responda uma coisa com toda sinceridade...
- O que é?
- Você... você... você me acha mesmo negro/pardo?
- Sinceramente? Isso não faz a menor diferença.
Ele se acalmou um pouco.
- Sei que você é um bom rapaz, Christian. Sei que gostaria de mim mesmo que eu fosse negro. Mas eu NÃO sou! Eu não sou negro, não tenho nada a ver com negro. Não me identifico com isso.
- Daniel. Eu não gosto de você “mesmo assim”. Eu gosto de você justamente por você ser como você é. Assim mesmo.
Ele ficou abobalhado quando ouviu isso.
- Hum... gostei...
- Você é lindo como é.
- ...
- Vou precisar desligar. Mas lembre-se que você é lindo por ser justamente assim. Desse jeito mesmo. Muitos beijos.
E antes de desligar, bem baixinho, ele sussurrou:
- Te amo!
E desligamos.
Em uma das noites em que o esperei no MSN, ele começou a me enviar textos estranhos (“veja o que escrevi”):
“Ele era forte, musculoso, pele morena, olhos verdes, tenista... ele me agarrou entre as pedras e me possuiu ali...foi difícil resistir... tentei mas acabei me entregando...”
- O que é isso?- Quero que você leia, Christian. Continue.“...era quase um deus grego.... seus traços eram perfeitos; seu corpo, escultural... continuamos e depois... e assim ele me pegava...
- Por que escreveu isso? Por que está me mandando isso?Ele ria.
- Como pode ser tão cruel brincando com algo que lhe contei? – eu perguntava.
Ele continuava mandando os textos.
“...e assim, atingi o orgasmo. Fim”.
- Gostou?- Tenho um fim melhor. “Peguei um salto alto bem vagabundo e enfiei no rabo desse tenista ridículo e no seu também. Fim” Agora tchau.Desliguei o MSN. Ele me ligou.
- Ah, Christian. Pára com isso. Eu só queria ver se você ainda sentia alguma coisa por aquele Eduardo de quem você gostava.
- Não. Eu já disse que quero você. Eu, ao contrário de você, sei o que quero.
- Então vamos nos ver?
Assim, ele me chamou para sair, enfim. Fomos almoçar juntos. O dia parecia perfeito. Todos os sinais demonstravam claramente que ele me queria. Mandava indiretas, dizia que estava perto finalmente de quem queria estar, e ao fim do dia, em minha casa, enquanto conversávamos, peguei na mão dele. Ele continuava sorrindo simpaticamente mas percebi que não se sentia à vontade.
- Está tudo bem?
- Está sim. – ele disse e se voltou para o lap top que havia trazido.
- Então... – não resisti – se está tudo bem, então me dê um beijo.
Ele arregalou os olhos, assustado, mas não teve como reagir. Antes que pudesse fugir ou fazer qualquer coisa, fui ágil: segurei suavemente seu rosto e lhe dei um beijo na boca.
Ele recuou, fazendo uma expressão de pavor.
- Você está criando uma situação chata, Christian. – ele disse irritado.
Meu mundo caiu.
- Situação chata?
- É. Eu não gosto de você. Nunca gostei. Não percebeu?
Eu quase não conseguia raciocinar. Tudo parecia um pesadelo terrível.
- Mas... se não gostava de mim... porque quando eu me afastei você veio atrás? Por que me disse tantas coisas românticas e até disse que me amava?
- Ah, sei lá. Eu estava na dúvida. Mas não quero você. Desculpe.
Meu coração se partiu em mil pedaços. Tudo que eu queria era sair correndo, deitar na minha cama e chorar até dormir, sem ter que ver ninguém, amigos ou família, por um bom tempo.
- Eu sou muito feio, Daniel?
Ele não me respondeu e me olhou fazendo olhar de piedade, e dando um sorriso aparentemente amigável.
- Ah, Christian... – e não terminou.
- Você parecia gostar tanto de mim antes de me ver pessoalmente.
- Orkut muda muito as pessoas, né? Não tinha foto de corpo. Mas não fica assim não, eu arrumo outro para você. Você gosta de neguinho, né? Um dia eu arrumo um para você.
Aquilo doeu ainda mais.
- Você quer que eu vá embora? – ele disse, sorrindo.
- Sim. É, eu quero sim.
Fui dormir e acordei no meio da noite. Quando temos sonhos ruins, durante algum tempo, ao acordar, pensamos que ainda é verdadeiro. Por alguns instantes, pensei que fosse o caso. Mas não, era real. Ele não gostava de mim. Nunca havia gostado. Só havia me dado esperanças falsas.
Várias semanas se passaram. Eu ainda estava triste, mas achei que não era certo da minha parte culpá-lo. Talvez ele não tivesse culpa, tenha ficado indeciso, só isso.
Liguei para ele e resolvi aceitar a ajuda para arrumar alguém. Se ele era meu amigo, como dizia ser, me ajudaria.
Impaciente e indiferente, ele entrou no MSN e me mandou algumas fotos de gays que conheciam.
- Esse aí... bom, como você pode ver, ele tem músculos... ele é popular... ele jamais olharia para uma pessoa como você. Já este aqui, bom... ele é muuuuuuito popular. É, bom...
- Você não tem nenhum amigo que goste de garotos que não sejam musculosos?
- Bom, Christian... vamos ser sinceros? Existe um padrão na nossa sociedade. Garotos magrelos não estão nesse padrão. Homem tem que ter MÚSCULOS! Por isso freqüento uma academia. Por isso ando com garotos que têm essas características... Você acha que quero ficar fora do padrão? Deus me livre! Christian, você é magricelo. É como um cabelo na sopa: não dá vontade de comer. Você não atrai ninguém. Olhe, aprenda uma coisa: TUDO é STATUS nessa vida. Você acha que eu digo que sou gay para meus amigos héteros populares? Claro que não, não dá status sair dizendo isso, eu perderia toda a popularidade que conquistei! Eu minto mesmo. Outro dia, na entrevista de emprego, eu menti, sem ninguém perguntar, que ali perto morava minha noiva. Outro dia, com meus amigos héteros, eu fiquei com uma garota. Você acha que eu ia deixar que percebessem que eu era gay? Mas NUNCA! Morro negando, meu bem!
- Isso é se prostituir, de certa forma.
- Deixe de ser dramático, Chistian. Todo mundo é assim. Você acha que alguém gosta de ser magrelo? Negro? Gordo? Deus me livre!
- O que você está me dizendo é horrível! Não vejo nada de errado em ser negro, gordo...
- Ah, faça-me o favor, Christian. Eu vou lhe contar agora uma historinha real. Vem cá, ouve só: eu conheci, há algum tempo atrás, um garoto na minha galera gay. Ele era gordo, muito gordo, obeso. E olha que era loiro de olhos claros. Todo mundo falava com ele, era educado, lógico. Mas você acha que se aproximavam de fato? CLARO que não! Não dá status andar com ele. Era “oi, e aí? Tudo bom? Quanto tempo, querido! Deixa eu ir lá que estão me esperando. A gente se fala”. E sumiam de perto dele. Ele sempre ia às baladas com a gente. Você acha que ele pegava alguém. Claro que não, ele se colocava no lugar dele. É assim. E eu jamais ficaria com ele. Eu quero é subir, meu querido. Todo mundo quer. E eu estou saindo, se quer saber, com um garoto forte, rico e loiro.
- Pois bem, Daniel. O fato de ele ser rico e loiro muda alguma coisa? Nem pergunto sobre o “forte” porque para isso já sei a resposta.
- Olha, Christian... não vou lhe dizer que é SÓ isso. Mas que dá um empurrãozinho, dá sim. Claro que dá. Todo mundo é assim. Eu pelo menos admito. Quem é que não gosta de um namorado rico para pagar restaurantes caros e te levar de carro para casa. É um empurrãozinho, sejamos realistas.
Um nojo tão grande começou a tomar conta de mim, que já não entendia como havia algum dia me interessado por ele.
- Daniel, obrigado pela ajuda, mas preciso ir.
Resolvi tirar aquilo da cabeça, me ocupar com outras coisas. Naquela tarde, acabei gravando, em minha aula de canto, uma música que me emocionava. Fui extremamente aplaudido por todos ao meu redor. E minha professora, emocionada, disse que “aluno que já sabia cantar era uma maravilha”. Eu não esperava por tanto e fiquei feliz. Guardei a gravação e repassei a alguns amigos, todos elogiaram. Repassei a gravação para Daniel. Esqueci que ele era a única pessoa que não gostava de me ouvir cantar, e sempre havia dito que não gostava da minha voz. Depois de um tempo ele me respondeu:
- Por que me mandou isso? Já lhe falei que você não canta bem.
(Ele me disse isso, sem saber que naquele mesmo dia, com aquela mesma gravação, eu havia sido aplaudido).
- Você acha realmente, Daniel?
- É... você é magricelo, franzinho, feio e não canta bem.
PARE TUDO!
...parou?
Agora, preste atenção. Porque há momentos em que nós cansamos, nós não podemos mais ser bonzinhos, e você vai ver um dos únicos momentos da minha vida em que fui realmente CRUEL. Até mesmo a doçura e a gentileza de Christian Labure têm seus limites.
- Sou magricelo, não sou?
- Já não falei que sim?
- É... e você é gordo.
- Heim? (ele não acreditou no que falei)
- Sim, você é. E isso não o torna pior nem melhor do que ninguém. O que o torna uma pessoa feia é que você tem raiva das pessoas gordas, fala mal do garoto gordinho que não arrumava ninguém. Você o critica e tenta diminuí-lo porque VOCÊ vê nele algo seu do qual não gosta em você próprio. Algo que não admite nem para si mesmo.
- Do que está falando? Eu já emagreci muito.
- Mas outro dia mesmo você estava reclamando de ter engordado.
- Ah... isso não é da sua conta...
- É, não é mesmo. Daniel, entenda uma coisa: não há NADA de errado em ser gordinho, nem em ser magricelo. Mas se você acha que tem, e pensa em falar mal e ridicularizar pessoas que possuem essas características, certifique-se antes de que VOCÊ não é o primeiro a possuí-las. Não adianta usar roupas estrategicamente e se matar na academia achando que vai mudar seu biótipo. Você se odeia por ser mulato, gay e gordinho. O que há de errado em ter essas características?
- Pára com isso, eu não sou...
- Claro que é.
- Eu não sou gordo. Eu tenho nojo de gente gorda.
- Então você tem nojo de você mesmo.
Ele emudeceu, e em seguida explodiu, quase chorando:
- Você é um magricelo, feio... e ainda por cima com uma cicatriz nojenta tenho pena de você.
- Quer saber de uma coisa, Daniel? Eu AMO o meu corpo, do jeito que ele é. Amo meu corpo magrelo, meu nariz grande, meus cabelos negros desgrenhados. AMO tudo em mim. E só lamento não ter percebido isso antes. Ah, sim, e eu AMO minha cicatriz.
Rapaz, aprenda a se amar também, e quem sabe um dia poderá ser feliz... sendo você mesmo, e não uma mentira. Boa sorte, e até NUNCA MAIS... seu merda!
Desliguei, risquei o número da agenda, deletei do MSN e bloqueei.
Algum tempo depois ele foi ao meu Orkut e escreveu, via depoimento, (isto é, de uma forma que ninguém pudesse ler) um texto enorme, cheio de xingamentos, tentando me convencer de que eu era magrelo e nunca seria feliz. Uns três depoimentos de milhares de linhas, cada um. Li a primeira linha e deletei todos.
Escrevi para ele: “Oi, Daniel. Sabe o depoimento enorme que me mandou? Pois é, não li (sim, você perdeu seu tempo). Desista de me escrever. E espero que algum dia você seja muito feliz... seu merda (só para não perder o costume).”
Terminado isso, eu o bloqueei também no Orkut para que não pudesse me responder, e deletei seu contato por ali. Saí de perto do computador, suspirei aliviado e apenas pensei:
- Ah, eu me sinto TÃO bem agora!!!!...
ATENÇÃO, um recado para os que leram esta história (se é que alguma boa alma a leu até o final):
Ninguém é melhor/pior do que ninguém por ser gordinho, magricelo ou forte. Esse padrão que coloca os homens fortes como superiores, em detrimento dos mais gordinhos, ou dos mais magros, é uma CONVENÇÃO humana. É cultural, espalhada tacitamente pelos meios de comunicação. Padrão cruel, porque faz com que pessoas saudáveis passem a se sentir mal com seus biótipos e convençam pessoas de que são inferiores com base em algo que não podem mudar.
É claro que sentir um pouco mais de atração por um ou outro tipo é normal e saudável, é gosto. Se quer um conselho, jamais dê crédito a alguém que tenta inferiorizar seu tipo. Procure amar alguém que o/a ame exatamente do jeito como você é. Acho que só assim uma relação pode durar e crescer saudavelmente e de uma forma realmente feliz.
Pode ser clichê, mas é de verdade: de alguma forma, você é LINDO/LINDA como é. Basta que você descubra a beleza que existe em você.
Um beijo grande a todos,
Christian Labure